Por Ronaldo Lidório
Neste artigo pretendo abordar o infanticídio indígena como fato social e expor as teorias antropológicas que fundamentam as idéias de apoio e oposição a tal prática no meio acadêmico. Farei uma tentativa de olhar também para o fato em si, do ponto de vista humano, daquele que o pratica ou experimenta, suas razões e cenário. Por fim darei sugestões sociais para sua interpretação e possíveis reações, através de um diálogo construtivo.
Infanticídio vem do latim infanticidium e significa objetivamente “morte de criança” nos primeiros anos de vida. Ao longo da história, foi aplicado a ambientes de morte induzida, permitida ou praticada, pelos mais variados motivos, normalmente sociais e culturais.
Fortes expõe a prática do infanticídio entre os Gauleses, nos primeiros séculos, como forma de regular o equilíbrio numérico entre os clãs[i] e, após quase 2 milênios compara tal prática com os Tallensi de Gana, África, em nossos dias. Na China, é elevado o índice de aborto de meninas, fato também encontrado no norte da Índia e tribos minoritárias da Indonésia. Entre os Konkombas de Gana a prática do infanticídio está ligada à sobrevivência[ii]. Em anos de seca, em que o acesso à alimentação é limitado, as crianças mais fracas e especialmente as enfermas (sobretudo as deficientes) podem não ser alimentadas devidamente, gerando desnutrição e morte. No Brasil indígena Cardoso de Oliveira nos fala sobre o antigo costume Tapirapé de matar a quarta criança, regulando assim o número máximo de três filhos por casal[iii]. Bamberger nos relata sobre o uso de uma planta da família das simarubáceas (Simaroubaceae) como anticoncepcional ou abortivo pelas mulheres Caiapó[iv] e Crocker relata sobre o infanticídio praticado pelos Bororo a partir de sonhos ou impressões de mau augúrio antes do parto[v]. Com base no Censo Demográfico de 2000, pesquisadores do IBGE constataram que para cada mil
crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto no mesmo período, a população não-indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. Há poucas pesquisas objetivas sobre o assunto.
crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto no mesmo período, a população não-indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. Há poucas pesquisas objetivas sobre o assunto.
O infanticídio, portanto, não é um fato isolado nem mesmo reside em um passado distante. É uma experiência atual e demanda, em si, uma avaliação antropológica isenta de partidarismo ou remorsos, que venha a observar este fato e suas implicações sociais para aqueles que o experimentam bem como os que o observam.
A Antropologia possui diversas formas de abordar práticas e costumes em um povo específico. Conseqüentemente, isso permite diferentes formas de interpretar uma cultura. A respeito do infanticídio (aceito, induzido ou estimulado em um grupo) há principalmente duas correntes teóricas que avaliam o fato, por ângulos distintos.
O relativismo ético-culturalNo Brasil, é basicamente o relativismo cultural, em confronto com os fundamentos da universalidade ética, que tem gerado os argumentos para as discussões em torno do infanticídio indígena.
O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos definidos em cada cultura. E que não há verdades universais visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro.
Cada cultura pesa a si mesma e julga a si mesma. A mutilação feminina, portanto, não poderia ser avaliada como certa ou errada, mas sim aceita ou rejeitada socialmente, de acordo com o olhar da cultura local sobre este fato social. Para o relativismo radical não há valores universais que orientem a humanidade, mas valores particulares que devem ser observados e tolerados. E assim, em sua compreensão de ética, o bem e o mal são relativos aos valores de quem os observa e experimenta.
Cada cultura pesa a si mesma e julga a si mesma. A mutilação feminina, portanto, não poderia ser avaliada como certa ou errada, mas sim aceita ou rejeitada socialmente, de acordo com o olhar da cultura local sobre este fato social. Para o relativismo radical não há valores universais que orientem a humanidade, mas valores particulares que devem ser observados e tolerados. E assim, em sua compreensão de ética, o bem e o mal são relativos aos valores de quem os observa e experimenta.
A grande contribuição do relativismo foi abrandar a arrogância das nações conquistadoras e gerar uma visão de tolerância cultural, especialmente nos encontros interculturais. Boas se contrapunha ao evolucionismo de Tylor, Frazer e Morgan que viam na civilização ocidental o estágio evoluído da humanidade, enquanto as nações e povos não ocidentais, “sub-evoluídos”, buscariam no ocidente um modelo humano de moral e organização. Conseqüência desta positiva contribuição do relativismo foi a fomentação da idéia de igualar o valor humano, indistinto de sua língua, cultura e história. Herder defendia que toda moral define seus valores no Volksgeist (literalmente espírito do povo), e entende que cada povo define seu próprio Geist, fazendo com que cada grupo possua valores sociais únicos e incomparáveis. Era uma reação ao Iluminismo que defendia os princípios universais de justiça, sobretudo na França.
O relativismo radical, porém, torna as culturas estáticas e estanques e as pretere de transformações autônomas, mesmo as desejadas e necessárias. Paradoxalmente, ele produz um forte etnocentrismo que se contrapõe à todo e qualquer processo de mudança ou transformação. Para estes a moral se enraíza na cultura e não na humanidade, rompendo assim com qualquer possibilidade de avaliação ou emissão de juízo sobre práticas ou costumes do outro. O bem é o bem permitido na cultura, cultivado por ela. O mal é seu oposto. Enquanto o infanticídio é parte do mal entre os espanhóis pode ser parte do bem entre os Yanomami, desde que esta seja a ótica de cada um sobre este fato social. Este relativismo, praticado de forma radical, incapacita o indivíduo, qualquer indivíduo, de propor mudanças em sua própria cultura por entender a cultura como um sistema estático e imutável, um universo a parte, pressupondo que as presentes normas culturais são perfeitas em si. Nasce daí o purismo antropológico, que enxerga todo elemento cultural como relevante e absoluto, todo costume como funcional e toda prática como algo justificável, sem necessidade de avaliação ou contraste, mesmo pelo próprio povo.
A fundamentação da universalidade éticaA defesa da fundamentação da universalidade ética, por outro lado, pressupõe que os homens, povos e culturas fazem parte de uma sociedade maior que é a sociedade humana. E esta possui, em si, valores universais de moralidade como a dignidade, sobrevivência do grupo e busca pela continuidade da vida individual. Sérgio Rouanet nos diz que mudanças podem ser necessárias no caso de grupos materialmente carentes ou regidos por normas e instituições de caráter repressivo. E que também tais mudanças devem ser conduzidas levando em conta a autonomia e interesse das populações[vi]. Ele nos diz que “a antropologia comunicativa… opondo-se ao relativismo puro acredita que a mudança através do contato intercultural é possível e desejável”[vii].
Para Roberto Cardoso a mudança é possível se percebida sua necessidade e deve ser processada no interior de uma comunidade intercultural de argumentação[viii]. Ele se baseia no etno-desenvolvimento que, na declaração de San José (1981) é “o fortalecimento da capacidade autônoma de decisão de uma sociedade culturalmente diferenciada para orientar seu próprio desenvolvimento e o exercício da autodeterminação”.
O valor desta fundamentação da universalidade ética é reconhecer que o homem, mesmo distinto e disperso compartilha valores inerentes. Pressupõe que fazemos parte de uma aldeia global e que, portanto, temos a ganhar no intercâmbio das idéias e valores. Que este intercâmbio, ao contrário de ser nocivo e etnocida, é construtivo. Que todo diálogo pode transmitir conhecimento aplicável em um contexto paralelo. É preciso compreender que o diálogo, praticado com base no respeito mútuo, é construtivo. Irá gerar um ambiente de avaliação da vida, necessário a todo o homem, visto que a cultura não é estática e muito menos a história.
Rouanet expõe que “o homem não pode viver fora da cultura, mas ela não é seu destino, e sim um meio para sua liberdade. Levar a sério a cultura não significa sacralizá-la e sim permitir que a exigência de problematização inerente à comunicação que se dá na cultura se desenvolva até o telos do descentramento”. Este argumento nos leva a compreender que os conflitos são universais, tais como a morte, o sofrimento, a discriminação ou a repressão. E perante estes conflitos podemos compartilhar a mútua experimentação na busca de soluções internas. Ao conversar com um índio Tariano no Alto Rio Negro, após prolongada sessão de perguntas sobre o processo tradicional Tária de sepultamento, ele concluiu dizendo que “como vocês brancos devem também saber, não há morte sem dor”. A dor, universal, resultado de conflitos e mazelas também universais, pede soluções internas que devem ser compartilhadas em um diálogo construtivo.
A unicidade humana e sua capacidade de transformação
Se por um lado o ambiente colabora para identificarmos os conflitos partilhados, o desenvolvimento de idéias únicas, e iniciativas incomparáveis e pioneiras, define o homem em sua essência. Konkombas e Bassaris, no nordeste de Gana, África, possuem 1.200 anos de história de convivência e partilha ambiental, mas observamos as fórmulas de parentesco divergirem rigorosamente. Os primeiros são endogâmicos (casam-se somente entre si) enquanto o segundo grupo pratica a exogamia (casam-se exclusivamente com pessoas de fora de seu circuito de parentesco) como valor chave para sua interação sociocultural.
Recorremos, portanto, às palavras de Laraia quando diz que “a grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura”[ix]. A unicidade humana, sua capacidade de iniciar novas coisas, desenvolver idéias e reconstruir o comportamento social o destaca do restante dos seres. Apesar da cultura abrigar o homem e encaminhá-lo em sua vida, é o homem quem a define. Uma simples idéia, um grito ou uma iniciativa pode mudar o rumo do grupo, alterar suas crenças fundamentais e gerar distinções sociais. Dentre diversas capacidades inerentes ao homem, uma delas é a de transformação social.
Brzezinski nos alerta que “a cultura vai se tornar a linha divisória do debate sobre a liberdade e os direitos humanos. (…) Rejeita a noção de direitos humanos inalienáveis com base no fato de que essa noção reflete uma perspectiva ocidental bastante provinciana”[x]. Como conseqüência do relativismo radical, parte da Antropologia brasileira possui nítida dificuldade em emitir qualquer julgamento ao que se apresenta como culturalmente definido, rotulando assim todo questionamento endereçado a uma prática ou costume, em um determinado ambiente cultural, como falta de aceitação ou intolerância. A ausência de diálogo e escambo intercultural privará diversos povos de soluções internas que precisarão encontrar daqui a 30 ou 40 anos, levando-os a olhar para trás e nos julgar, pela nossa omissão.
O machismo, na América Latina, embora seja cultural, é atacado e limitado por políticas públicas que vêem neste elemento cultural um dano ao próprio homem e sociedade. O jeitinho brasileiro, que patrocina a corrupção e tolerância de pequenos delitos, apesar de ser resultante de elementos também culturais não deixa de ser compreendido como nocivo ao homem. Como tal não é aceito pela sociedade como desculpa para a continuidade de práticas danosas à vida. O mesmo poderíamos falar a respeito do racismo. Nestes três casos a universalidade ética é evocada e aceita de forma geral pela sociedade e os direitos humanos são reconhecidos. Porque que não no caso de elementos culturais nocivos à vida, em contexto indígena? Isto me leva a aceitar a especulação de Maquiavel de que a guerra do vizinho nos incomoda menos do que nosso pequeno conflito familiar.
Como parte de um grupo de trabalho que estudou o infanticídio em Gana, no noroeste africano, entre 1995 e 1999, percebi que apesar das motivações para tal prática serem extremamente distintas de grupo a grupo, a morte, qualquer morte, causava sofrimento. Entre os Kassena, o infanticídio era motivado pelo desejo de se fortalecer o clã central, de chefia. Entre os Bassari, pelo desejo de aplacar a fúria dos espíritos causadores do nascimento de crianças deficientes. Entre o povo Konkomba por motivações de subsistência, privilegiando as crianças mais fortes na alimentação diária. Porém, nenhum destes grupos, ou qualquer outro sobre o qual tenhamos estudado, vê o infanticídio como uma prática construtiva, mas sim uma solução interna a partir de uma realidade social danificada. Esta cosmovisão local poderia ser comprovada a partir do conseqüente sofrimento experimentado.
Em Santa Isabel do Rio Negro, no ano de 2006, observei uma moça Yanomami à procura de ajuda no hospital local. Esmurrava seu ventre aparentemente tentando interromper sua gravidez no sétimo mês de gestação. Um enfermeiro local, comentando o fato, anunciou que nada se podia fazer, pois era uma atitude cultural, uma escolha compreendida apenas dentro do universo Yanomami. Mais adiante, interessado em observar o caso de perto, consultei seu irmão que a acompanhava ao hospital. Este claramente me confirmou que aquela gravidez era indesejada pelo grupo e, portanto, poderia ser interrompida. A escolha, apesar de ser de sua irmã, não aconteceria sem a pressão do grupo. Enquanto grávida, ou mesmo após ter a criança, ela não poderia transitar livremente pela aldeia e nem no seio da família, sofrendo privações. Ao explicar as motivações culturais para tal ato, tanto os temores como as limitações sociais definidas, ficou claro que todas as partes envolvidas compartilhavam certo grau de sofrimento. A moça, que esmurrava seu ventre, não o fazia sem indignação. O grupo, que a pressionava, o fazia nutrido pelo medo e tradição. O irmão, que a acompanhava, se sentia impotente e confuso. Apesar das diferentes cores que pintam nossos valores culturais, tão plurais, compartilhamos dos mesmos sofrimentos humanos e sociais.
Nossa história, nosso pesoNão podemos negar que a postura antropológica brasileira, não intervencionista, é influenciada também pela culpa coletiva pelo passado, pela forma desastrosa como os indígenas foram julgados e condenados. Postura semelhante se viu na Alemanha pós-nazista que, de uma xenofobia causticante, se extremou por algum tempo nos caminhos de uma tolerância radical ao diferente, qualquer diferente, mesmo o nocivo socialmente.
Calcula-se que havia 1,5 milhão[xi] de indígenas no Brasil do século 16, os quais, irreparavelmente, somam hoje não mais de 350 mil. Infelizmente, essa realidade etnofágica vai muito além das estatísticas e das palavras, pois é composta por faces, vidas, histórias e culturas milenares, as quais têm sofrido ao longo dos séculos a devassa dos conquistadores, a forte imposição econômica e perdas sociais tremendas. Permita-me redefinir os termos desta afirmação em uma impressão coletiva. Os conquistadores não são os outros. Somos nós.
A sociedade indígena ainda vive hoje sob o perigo de extinção. Não necessariamente extinção populacional, mas igualmente severa, quando se perde língua, história, cultura e direito de ser diferente e pensar diferente convivendo em um território igual.
Segundo Lévi-Strauss, a perda lingüística é um dos sinais de declínio de identidade étnica e decadência de uma nação. Ao observarmos tal sinal, percebemos quão desolador é o cenário. Michael Kraus afirma que 27% das línguas sul-americanas não são mais aprendidas pelas crianças[xii]. Isso significa que um número cada vez maior de crianças indígenas perde seu poder de comunicação a cada dia.
Aryon Rodrigues estima que, na época da conquista, eram faladas 1.273 línguas,[xiii] ou seja, perdemos 85% de nossa diversidade lingüística em 500 anos. Luciana Storto chama a atenção para o Estado de Rondônia, onde 65% das línguas estão seriamente em perigo por não serem mais aprendidas pelas crianças e por terem um ínfimo número de falantes. Precisamos perceber que a perda lingüística está associada a perdas culturais complexas, como a transmissão do conhecimento, formas artísticas, tradições orais, perspectivas ontológicas e cosmológicas.
Perante tal realidade somos levados a observar o passado e defender uma postura radicalmente não intervencionista, não dialógica, no presente. No subconsciente talvez estejamos tentando minimizar o risco de outros erros. Porém não percebemos que esta omissão apenas há de contribuir para a ausência de soluções de subsistência, seja numérica, lingüística ou cultural, dos povos indígenas do Brasil. Não devemos evitar o diálogo, mas sim a subversão. Não devemos nos omitir da busca coletiva pela solução de conflitos, mas sim evitar a imposição em reações que não sejam autônomas. Ao participar da construção do ambiente que gera o dano devemos também participar da busca pelas soluções.Diga não ao infanticídio indígena!
Os direitos humanos universais e o infanticídio
A Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 promulga que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”[xiv]. Afirma também que “toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e segurança pessoal”[xv]. Continua declarando que “todos são iguais perante a lei e têm o direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei (…) contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”[xvi]
A conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993), fórum preparatório para as declarações de Túnis (1992), Bangladesh (1993) e a Conferência de Viena, discutiram e alertaram para o perigo do relativismo radical como teoria embasadora para a avaliação de práticas e costumes culturalmente definidos. O ministro das relações exteriores da Indonésia, em 14 de junho de 1993, afirmou, na Declaração de Bangkok, que “não viemos a Viena (…) para defender um conceito alternativo de direitos humanos, baseado em alguma noção nebulosa de relativismo cultural como falsamente acreditam alguns”. O vice-ministro das relações exteriores do Irã, em 18 de junho de 1993, declarou que “os direitos humanos, sem sombra de dúvida, são universais (…) e não podem estar sujeitos ao relativismo cultural”. O vice-ministro das relações exteriores da República Socialista do Vietnã, em 14 de junho de 1993, observou que “os direitos humanos são, ao mesmo tempo, um padrão absoluto de natureza universal e uma síntese resultante de um longo processo histórico (…) universalidade e especificidade são dois aspectos orgânicos dos direitos humanos inter-relacionados, que não se excluem, mas coexistem e interagem”.[xvii]
A Declaração de Viena, aprovada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, rejeitou o relativismo cultural radical e defendeu a universalidade ética, mesmo sujeito ao pluralismo de culturas e cosmovisões. No parágrafo 5º da Declaração de Viena lemos que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados (…). Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos e culturais”[xviii].
ConclusãoA antropóloga Keila Pienezi expõe que “O Estado tem um papel muito importante e não pode se omitir sobre ele, que é o de garantir o direito à vida e às condições para as crianças crescerem e terem acesso à cidadania. Isso pode ser feito por meio de diálogo com as diferentes etnias que nós temos no País”[xix].
Alguns fatos dialógicos positivos em contexto inter-cultural podem ser ressaltados. O primeiro advém da ação da FUNASA no tratamento de enfermidades básicas entre as populações indígenas no Brasil, entre elas a malária. Apesar dos grupos indígenas não abandonarem, em grande parte, sua forma natural de tratamento, um número expressivo de grupos indígenas reconhece e utiliza hoje o tratamento anti-malarial proposto pela FUNASA para os casos de malária reconhecidos por eles e pelos seus agentes de saúde. Tal atitude dialógica presta um serviço necessário e vital. Salva vidas e não agride os povos. Se em algum momento tal agressão for observada, deve-se mais à abordagem do que à proposta. No Alto Rio Negro e ao longo do Rio Solimões tenho observado todas as etnias procurando e valorizando o acesso ao tratamento deste mal reconhecidamente causador de sofrimento humano, a despeito de sua diversidade lingüística e cultural, e mesmo das diferentes soluções internas que cada grupo historicamente propõe para o tratamento da malária em seu universo.
O segundo fato dialógico nos é fornecido por Cardoso de Oliveira e trata-se da prática do infanticídio entre os Tapirapé. O processo se dava na eliminação do quarto filho, limitando assim cada família a, no máximo, três filhos. A ação de freiras católicas para assegurar a sobrevivência do indivíduo que nasce bem como do grupo, que corria risco de extinção (chegou apenas a 54 indivíduos) se deu através do diálogo e não da imposição. A argumentação das freiras, aceita finalmente pelo grupo, se baseava na valorização do próprio grupo, e seu gradual enfraquecimento, com o infanticídio. Cardoso de Oliveira nos expõe que a decisão de extinção do infanticídio se deu em um círculo culturalmente definido, autônomo, não induzido. Neste caso os Tapirapé aceitaram o argumento da razão humana, social e cultural. Observo, portanto, que nas mudanças necessárias que envolvem risco de sobrevivência, subsistência e dignidade, os povos tendem a repensar seus valores com base nos efeitos objetivos sobre o próprio grupo, aceitando o argumento mais forte que privilegie sua sobrevivência.
O terceiro fato dialógico nos é exposto por Edson e Márcia Suzuki[xx], co-fundadores da ONG ATINI (Voz pela Vida), que, atendendo ao apelo dos pais colaboraram com a retirada de dois bebês da tribo Suruwahá em 2005 para tratamento apropriado em São Paulo. A retirada dos bebês os liberava do sacrifício por iniciativa da comunidade Suruwahá. Iganani, uma das crianças, chegou a ser deixada na mata para morrer mas foi resgatada pela mãe, por convencimento da avó. Tititu, a outra criança, quase foi flechada pelo pai que decidiu levá-la aos “brancos” a procura de ajuda. A mãe de Iganani chama-se Muwaji e explicitou seu desejo por ajuda. Desejava, a despeito da prática comunitária de seu grupo, preservar a vida da sua filha. Os Suzukis, durante cerca de 20 anos vivendo entre os Suruwahá, contabilizam cerca de 28 casos de infanticídio no grupo. Este fato social (a preservação da vida por iniciativa indígena, de crianças que seriam sacrificadas na comunidade por iniciativa dos próprios indígenas) abriu um precedente ético e comportamental entre os Suruwahá. É possível que percebam o que Pritchard chama de possibilidade de solução. Quando um povo, pela iniciativa de uma idéia ou ato, repensa suas soluções para o sofrimento e as adequa a práticas mais humanizadoras na cosmovisão do próprio grupo. A ATINI também tem sido promotora da conscientização sobre o direito à vida em cerca de 50 etnias em nosso país através das cartilhas sobre os direitos humanos aplicados ao universo indígena[xxi].
Devemos reconhecer o direito de todo povo de dialogar com outros povos a respeito do sofrimento e suas soluções. De compreendê-las, compará-las e decidir sobre qual solução tomar.
Devemos reconhecer o direito de todo indivíduo de levantar-se contra os valores culturais experimentados e propor novas alternativas, sobretudo nos casos em que há dano à vida, à dignidade e à subsistência.
Devemos reconhecer que nenhuma cultura é estática ou isolada da sociedade humana. E que, pertencente a esta, partilha também os mesmos sonhos e conflitos. Que a ação dialógica, sob o manto da autonomia de cada povo, trás benefícios humanos que não estancam a vivência cultural pois práticas aceitas na atualidade remontam a decisões passadas por critérios próprios ou adquiridos.
Que o Estado brasileiro deve tratar o infanticídio indígena de forma ativa, informando e dialogando com as sociedades indígenas em nosso país a respeito das alternativas para solução deste conflito interno, que isente a morte das crianças. Que garanta o direito de vida, criação e dignidade dos indivíduos, independente de seu segmento étnico.
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