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SOCIEDADE BÍBLICA


sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O natal dos mais pobres


Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo

Pois estimados leitores, fui até uma agência dos Correios para escolher uma carta de uma criança para atender o pedido e fazê-la feliz. Como alguns devem saber, já há alguns anos os Correios começaram essa campanha bonita, de responder aos muitos pedidos feitos ao Papai Noel pelas crianças mais pobres. O sistema é simples, e se o amigo ou amiga que me lê tiver um cutuco e um impulso de fazer isso agora, ainda há tempo. Até hoje os Correios vão e entregam o seu presente sem custos de remessa. Você vai a uma agência participante, pega a caixa com as cartinhas, escolhe uma carta, dá para aquela criança o que ela pediu e o mundo inteirinho se enche de graça.
Pois a baronesa e eu resolvemos que, como o Manuel, com 5 semanas de idade ainda se contenta com qualquer coisa em forma láctica, especialmente vindo da mãe dele, iríamos dar o presente dele para uma criança mais atenta à época e seus significados. E, estimados leitores, olhar para aquela caixa é uma lição e tanto sobre a nossa época e seus significados. Você vê praticamente tudo, mas tudo mesmo. Pedidos que parecem ter sido feitos por quem jamais esperou que eles fossem mesmo ser atendidos, na sua relativa inviabilidade; passando por verdadeiros gestos de relativo desespero, até cartas que me pareceram coisa de quem frequenta esses templos onde dinheiro é igual a felicidade. Li muitos pedidos de brinquedos da moda, uma maioria de pedidos de videogames, games, pistas de corrida com carrinho junto, netbooks e digitais em geral. E, e isso me chamou a atenção, verdadeiras listas de compras produzidas meio que em série.
Fiquei ali na agência pensando, entre um Sedex e outro. Eu não lembro de maiores diálogos com Papai Noel. Acho que a minha família era mesmo agnóstica demais para nos manter nessa crença de um bom velhinho e seus trajes absolutamente inadequados para o verão brasileiro.
Lembro da choradeira lendo o Meu Pé de Laranja Lima, a história do menino pobre demais para ganhar presente, do Portuga, da tragédia que a impossibilidade nos deixa como único destino. Mas aqueles meninos do livro, de um Brasil mais antigo, ainda ficariam contentes quase que com qualquer coisa que lhes fosse dada.
O que eu vi, lendo as cartas, ou pelo menos foi o que eu entendi, foi que os meninos pobres de hoje vivem cercados por um Brasil que avançou muito como sociedade de consumo, e bastante na capacidade de consumo. Mas não o bastante para garantir que todas as crianças possam ter os seus sonhos de consumo atendidos. A maioria dos presentes solicitados eram sonhos industriais de crianças que vivem em uma sociedade industrial, mesmo que à margem. Os presentes anunciados ou merchandizados na tevê superavam por larga margem as bicicletas, por exemplo.
A minha impressão, lendo as cartas, foi de que, diferentemente dos tempos das laranjas lima, as crianças pobres de hoje querem os mesmos presentes das crianças de classe média. Ou pelo menos os pais deles, que escrevem as cartas, traduzem esse desejo, ou o desejam para elas, difícil dizer.
A impressão que fica é que a combinação de sociedade de consumo com acesso generalizado à informação produziu um sonho coletivo e mais ou menos igualitário na construção do sonho, mesmo que ainda muito desequilibrado na capacidade de realizar o sonho.
Me pareceram muito pouco imaginativas as cartas, e isso me entristeceu. Um sonho de Natal poderia ser mais do que um desejo específíco por um produto.
Quero deixar claro que não dou a mínima para Natal, presépios ou decoração e luzinhas. Eu não gosto de nada disso. Detesto o comercialismo da coisa e solenemente o ignoro. Adoro presentear, mas pelos motivos certos, e não porque o bom velhinho assim mandou. Prefiro datas com significados, coisas orgânicas e criados por nós para celebrar nossas datas e conquistas entre nós, nossas famílias amigos. Não tenho nada a ver com o espírito natalino que acomete a Vivo bem nessa época em que nasceu Jesus. Nada.
Escolhi uma carta, uma que me pareceu menos comercial e mais singela. Preferi fazer ao contrário, dando o que foi pedido e acrescentando algo que eu mesmo pensei para dar, e que me deu uma certa trabalheira encontrar. Presentes, para serem mesmo presentes, devem ser, ao menos um pouco, um sacrifício, não acham?
Gosto de saber que estamos ficando menos pobres como nação, e que mais e mais pais poderão presentear os seus filhos, no futuro que estamos construindo.
Mas sinto uma inquietude muito grande ao pensar no que os nossos meninos e meninas estão desejando, querendo, precisando, para serem felizes.
Algo me diz que, como sociedade, conseguimos avançar e entortar ao mesmo tempo. Nossos Natais vão se tornar mais fartos, e com cada vez menos significados, e o meu medo, é que isso aconteça com as nossas vidas. Nesse caso, mesmo mais ricos, ou pelo menos mais prósperos, seremos muito, mas muito mesmo, mais pobres.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

Fale com Marcelo Carneiro da Cunha: marceloccunha@terra.com.br
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