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Ana Cláudia Barros e Daniela Arbex (Tribuna de Minas)
O programa Segundo Tempo, considerado carro-chefe do Ministério do Esporte e alvo de denúncias de corrupção contra o titular da pasta, Orlando Silva, era executado em Juiz de Fora (MG) até o mês passado pelo Instituto Cidade, uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). A entidade, criada em 2003 e presidida por um filiado do PCdoB - mesmo partido do ministro -, viu sua sorte mudar em 2007, quando passou a contar com liberações milionárias por parte do Governo federal. Só pelo Segundo Tempo, a instituição recebeu mais de R$ 4 milhões em apenas quatro anos, dinheiro destinado à manutenção de 90 núcleos esportivos comunitários na cidade e região. A reportagem teve acesso, com exclusividade, a documento interno do órgão ministerial, assinado pela Secretaria Nacional de Esporte Educacional, em junho de 2010, que aponta diversos descumprimentos contratuais por parte do Instituto Cidade.
O "Parecer de avaliação do aspecto técnico nº 102/2010" é categórico ao indicar atendimento dos beneficiados abaixo da meta estipulada, duplicidade de nomes cadastrados no programa, aquisição de material esportivo suplementar em divergência com os itens pactuados no plano de trabalho, utilização de modalidades licitatórias em desacordo com o estabelecido no termo de convênio para aquisição do reforço alimentar e dos materiais esportivos suplementares, além de utilização de recursos aportados na ação para fim diverso do pactuado. Entre os itens que chamam atenção está o uso do dinheiro público - destinado ao atendimento de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social - para a compra de caixas de pizza, pagamento de contas telefônicas e de bar, compra de passagens de avião para Brasília, com a finalidade de capacitação técnica em dia em que não foi realizado qualquer evento específico, entre outros.
O parecer é relativo ao convênio 381/2007, cuja liberação de recursos, no valor de R$ 1.910.301,20, com contrapartida de R$ 212.314, teve como responsável Wadson Nathaniel Ribeiro (PCdoB), na época, subsecretário do Esporte. Hoje Wadson responde pela Secretaria Nacional de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social. A assessoria do secretário foi procurada, mas disse que só o Ministério poderia se pronunciar a respeito, o que não foi feito até o encerramento da reportagem.
O documento destaca o cumprimento parcial do convênio e recomenda encaminhar a prestação de contas final para a Coordenação Geral de Prestação de Contas (CGPCO) do Ministério do Esporte, "para análise financeira e contábil quanto à correta aplicação dos recursos públicos, cabendo avaliar, inclusive, quanto à necessidade de restituição de recursos ao Erário".
No entanto, apesar das impropriedades apontadas na execução financeira de algumas ações, citadas em parte do documento de 30 páginas, em junho de 2010, o Ministério do Esporte transferiu para a entidade, no dia 23 de setembro do mesmo ano, R$ 1.182.558, referente a última parcela da renovação de contrato nº 719.306/2009 com o Instituto Cidade. A informação consta no Portal da Transparência. Essa remessa faz parte da verba de R$ 2.365.116 para a execução do Segundo Tempo pela entidade, entre 16 de dezembro de 2009 e 2 de setembro de 2011.
Questionada sobre isso, a assessoria de imprensa do Ministério do Esporte informou que a devolução de recursos ainda está em aberto, já que "é posterior à conclusão da análise financeira da prestação de contas, que ainda está em trâmite na Coordenação Geral de Prestação de Contas." Na prática, embora a análise financeira não tenha sido concluída, os cofres públicos continuaram repassando dinheiro para o Instituto Cidade.
O presidente da entidade, José Augusto da Silva, disse que há "divergência profunda" entre o relatado no documento e o realmente executado, garantindo que o parecer ainda está em avaliação. José Augusto afirmou ainda que todas as alterações promovidas no contrato 381/2007 tiveram o objetivo de adequar o convênio à realidade local e promover melhorias na sua execução.
Vistoria não foi feita 'in loco'
O parecer de avaliação é revelador. Embora aponte cumprimento parcial das diretrizes do convênio 381/2007, coloca em dúvida várias informações remetidas pela entidade contratada. Cabe ressaltar que, em nenhum momento, técnicos do Ministério do Esporte vistoriaram "in loco" as unidades do programa Segundo Tempo na cidade, transferindo a responsabilidade de controle social para uma entidade local cujos responsáveis não foram encontrados até a finalização desta reportagem.
Ainda assim, eles apontam divergência ao analisar os dados que foram disponibilizados. Isso inclui desde questões meramente técnicas, como o envio de apenas um dos três relatórios da fase operacional, até questões ligadas a divergência entre os espaços pactuados e os incluídos na base cadastral. Uma das mudanças de endereço de núcleo esportivo ocorreu sem a anuência do ministério, conforme escrito nas folhas de número 6063. Apesar disso, constatou-se que os núcleos foram implantados em sua integralidade "de forma satisfatória" em relação a disponibilização de espaços físicos, equipamentos e insumos. O documento destaca "a necessidade de avaliação do setor financeiro competente visto que foram adquiridos itens não pactuados, cujo valor deverá ser restituído aos cofres públicos" (folhas 6065).
Segundo os técnicos, para a aquisição de material esportivo suplementar, previsto no "Plano de trabalho", foi estimado o valor de R$ 30 mil. Apesar de informar a execução de R$ 28.453, não foram localizadas notas fiscais que comprovem a execução de itens remanescentes. Para a compra dos materiais, foi adotada a tomada de preço, procedimento que diverge do estabelecido no convênio.
No tocante ao número de beneficiados, não foram identificadas as seis mil crianças e adolescentes declarados . Em um turno com previsão de atendimento de 600 meninos, havia 255, o que indica um percentual de atendimento de 42,5%. "Conclui-se pelo atendimento parcial da meta de beneficiados pactuada, vislumbrando a ocorrência de oscilações na frequência durante todo o período da execução superior ao percentual aceitável, comum a todos os convênios, razão pela qual cabe sugerir uma avaliação minuciosa pela Coordenação Geral de Prestação de Contas deste Ministério, quando da análise financeira e contábil, no intuito de apurar os possíveis saldos decorrentes do atendimento parcial e que impactam na Ação Reforço Alimentar, a fim de evitar danos ao Erário" (folhas 6071).
Em relação aos profissionais dos núcleos, o parecer coloca em dúvida a efetiva manutenção dos coordenadores de núcleo e monitores durante todo o período de desenvolvimento das atividades, apesar dos comprovantes de pagamentos apresentados. Outra questão é relativa ao item capacitação. Quando da formalização do convênio 381/2007, foi previsto o pagamento de passagem aérea para capacitação, totalizando cinco passagens no valor de R$ 2.541,20. O ministério promoveu a capacitação do coordenador geral em 15 e 16 de janeiro de 2008 e dos coordenadores de núcleo, de 25 a 27 de fevereiro de 2008. No entanto, os comprovantes de pagamento referentes a passagens do trecho Rio - Brasília - Rio são são relativos aos períodos 4 a 6 de maio de 2009, 25 e 26 de junho de 2009, ocasião em que não foi realizado evento de capacitação ministrado pela Secretaria Nacional de Esporte Educacional.
"Achocolatados azedos"
Já sobre os lanches oferecidos, foi constatado o fornecimento adequado do pactuado, embora problemas tenham sido detectados como "achocolatados azedos". O presidente do Instituto Cidade, José Augusto da Silva, garantiu que todos os alimentos impróprios para consumo foram substituídos, assegurando a qualidade dos gêneros fornecidos.
A utilização dos rendimentos obtidos por aplicações de recursos do convênio no mercado, R$ 61.494,70, também foi objeto de questionamento. Embora a informação do Instituto Cidade ao Ministério do Esporte aponte para a sua utilização em ações de melhoria no desenvolvimento do programa, foi identificado emprego do dinheiro em despesas de "táxi, hospedagem, restaurantes, Banco do Brasil Seguro, cartório, bar, entre outros", o que ensejou por parte do órgão ministerial recomendação de posterior análise. "Se a convenente procedeu pagamentos indevidos e/ou além do pactuado sem a devida justificativa e anuência desta unidade, a execução de tais despesas deve ser avaliada pela CGPCO/ME" (Folhas 6078).
Quanto ao item transporte, o Instituto Cidade se comprometeu a investir R$ 28.875 para o custeio da ação, em contrapartida. Mas os recursos inicialmente destinados à aquisição de vales-transporte para os beneficiados do programa, ou seja, seis mil meninos, foram convertidos para custear locação de vans, pagar corridas de táxi, entre outros. "Ante o exposto, considerada as divergências identificadas, restam dúvidas quanto ao efetivo cumprimento da presente ação, uma vez que constatada a realização de pagamentos indevidos, sem anuência desta unidade gestora. Ressalte-se que a execução de tais despesas deve ser avaliada, devendo ficar os custos relativos sob a responsabilidade exclusiva da convenente, a título de despesa excedente. Nesse sentido, sugere-se a devolução dos recursos via Guia de Recolhimento da União (GRU)".
Na conclusão, os técnicos aprovaram parcialmente a execução física e atingimento dos objetivos do convênio, "considerando que o projeto não foi implantado e executado de acordo com o pactuado, com ressalvas em atos de gestão (...)"
Panificadora criada três meses antes
Um contrato no valor de R$ 956.160 foi assinado entre o Instituto Cidade e a Panificadora e Comércio VJ e Filhos Ltda., em 10 de julho de 2008, para o fornecimento de 72 mil refeições ao mês para seis mil alunos do projeto, conforme planilha de especificação do edital de licitação divulgado pela entidade. A panificadora foi constituída três meses antes do processo licitatório, em abril de 2008, de acordo com documentos da Junta Comercial de Minas Gerais, conforme apurou a reportagem. No entanto, o edital de tomada de preços número 001/002 incluiu, como exigência, apresentação de um atestado de desempenho anterior pela participante. Na prática, a candidata deveria comprovar capacidade de atender quantidade semelhante a exigida no edital: mais de um milhão de lanches durante todo o contrato. Mas demonstrativo de operações da empresa indica que, no mesmo mês que ganhou a licitação, ela havia movimentado apenas R$ 1.120,05.
Outra irregularidade diz respeito ao item de qualificação econômico-financeira, o qual estabelece a necessidade de comprovação da empresa participante do processo licitatório de ter patrimônio líquido correspondente a 5% do valor estimado na licitação, o que corresponde a R$ 47.808. Segundo registro na Junta Comercial de Minas Gerais, em abril de 2008, o capital social da panificadora era de R$ 30 mil. Dado controverso é que a modalidade escolhida para a disputa, a tomada de preço para a aquisição de bens e serviços, só pode ser adotada para concorrências de até R$ 650 mil, segundo a lei 8.666/93. Valores acima disso devem ser licitados mediante pregão eletrônico, conforme decreto número 5.504/2005 e portaria ministerial 217/2006. Esses detalhes tornariam a empresa vencedora inapta a participar da concorrência.
TERRA
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