Em O Estado do Egito, Alaa al Aswany ilustra a decadência do Egito de Mubarak. E, depois desta leitura, o porquê da Primavera do Cairo fica enquadrado com precisão. Nestes artigos de opinião (escritos antes da revolução), o romancista egípcio descreve, por exemplo, onepotismo mubarakiano.
Seguindo todos os preceitos dos regimes sultanísticos, a economia egípcia estava nas mãos da família e amiguinhos do ditador. A crueldade policial também é analisada e criticada. Aswany está no seu melhor quando expõe a irreligiosidade dos polícias-espancadores. Estes algozes julgam-se homens muito pios. Aswany mostra que isso não é bem assim.
Mas o ponto mais repulsivo da decadência egípcia é mesmo a forma como as mulheres são tratadas. O título de uma coluna diz tudo: "Porque é que os egípcios molestam mulheres?" (p. 125). E é neste ponto que Aswany revela toda a sua ingenuidade.
O autor acaba quase todas as colunas com um redentor "a democracia é a solução". Para todos os problemas, Aswany tem uma solução infalível: eleições livres. Ora, uma democracia constitucional é, sem dúvida, a melhor solução para a questão do nepotismo e do excesso de poder coercivo do Leviatã. Mas a democracia não resolve - por artes mágicas - a questão moral e social do desprezo pelas mulheres.
Basta olhar para Paris ou Amesterdão. Os muçulmanos europeus têm democracia, mas a condição da muçulmana europeia está longe de ser bestial. Além de um quotidiano de submissão, convém destacar que os crimes de honra são normais nas "comunidades muçulmanas" .
Portanto, quando diz que a democracia é a solução para a forma animalesca como (muitos) egípcios molestam as mulheres, Aswany está a ser ingénuo e superficial. O fanatismo religioso que leva o puro a ver o demónio no corpo da mulher não se resolve com democracia, mas com um debate religioso, moral e até filosófico.
A democracia pode criar o palco para esse debate? Pode. Mas também pode legitimar, ainda mais, o fanatismo. Uma não-democracia como a Malásia pode ser um regime menos fanático e mais decente para as mulheres do que uma - hipotética - democracia arábica.
Mas, com ou sem democracia, os muçulmanos têm mesmo de resolver a questão que está no centro do seu barril de pólvora: o desprezo pela mulher, a submissão da mulher, o pecado em cada curva. Nas últimas décadas, as sociedades muçulmanas passaram a ver a mulher como sinónimo de demónio (nos dias pares) ou de coelhinha parideira (nos dias ímpares).
Por outras palavras, o centro muçulmano aceitou as teses wahabistas. A mulher passou a ser apenas um corpo, um corpo sem personalidade, um corpo onde apenas existe o pecado e a procriação . Só. Neste contexto, os sacaninhas-que-molestam sentem que podem transformar as mulheres em meras bonecas insufláveis. Ora, como relembra Al Aswany, o Islão não tem de ser isto, o Islão não tem de ser sinónimo de wahabismo.
Aliás, num tempo não muito distante, a sensualidade da mulher não era uma ameaça para Alá.
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